16.4.08

Diálogos em areia branca - primeiro ensaio

Homem sentado em praia deserta de mar azul anil e areia branca, fina como seda, com grandes formações rochosas ao longo da costa. Ele se acomoda, reclina e apóia a espádua sobre uma rocha de aproximadamente dois metros de atura cuja superfície riscada pela ação do vento e da areia oferece filigranas de encantador e elaborado estilo. O estímulo tátil mistura-se ao cheiro fresco do mar trazido pela brisa, causando silenciosa sinestesia. Por um instante, o homem pensa atingir um estágio de total relaxamento e entrega a si mesmo. Põe-se fora da realidade e, em seu semi-transe, quase não escuta a voz que lhe dirige a palavra, um susurro de tom grave mas suave, ao mesmo tempo sólido e lento, como um velho avô pigarreante de olhar agudo, sabedoria inquestionável e sorriso maroto que só a experiência de vida vivida pode oferecer:
VOZ - O que fazes aqui?
HOMEM - Como?! Quem está falando? De onde vem essa voz?!
VOZ - Tanta pressa! Tantas indagações sobre o óbvio! A uma pergunta minha, ofereces três como resposta!
HOMEM - Deus meu! Enlouqueci! Estou ouvindo vozes!
VOZ - Não estás ouvindo vozes! Apenas uma voz. E considerando o abuso de recostares sobre mim teu peso cansado, poderias ao menos demonstrar o mínimo de cortesia em reconher-me como mais do que um patológico figmento de sua provavelmente limitada imaginação.
HOMEM - Recostado sobre você?! (...) Uma pedra? Eu estou conversando com uma pedra?! Como é possível?!
VOZ - Se vamos usar rótulos, prefiro que me chames de Rocha. Ainda serão milhões de anos até que o vento e o mar me cobrem o preço final do tempo e me tornem simplesmente pedra. Outros milhares até que minha consciência se dilua entre os grãos de areia desta praia.
HOMEM - ...Sonho... Será que estou sonhando?
ROCHA - Ótimo. Muito original. No lugar de um figmento patólogico, sou agora um figmento saudável da tua - definitivamente - muito limitada imaginação. Acho que se eu usasse punhos de quartzo para repelir tua enfadonha presença, pensarias estar completamente louco em ver uma rocha se movendo... Talvez então te tornasses um interlocutor mais interessante!
HOMEM, sobressaltado - Você... tem braços? E punhos?!
ROCHA - Não, não tenho. Mas sou capaz de imaginá-los. Quando a sua idéia de um século divertido consiste em contar as ondas e observar a paisagem, sobra tempo para conjecturar e imaginar o que faria se as coisas fossem diferentes. Eventualmente um falante de duas pernas passa por aqui. Poucos se recostam sobre mim, e desses um número ainda menor se dispõe a ouvir uma velha Rocha. Sinto-me só.
HOMEM - Bem... se vamos vamos usar rótulos, prefiro ser chamado de homem no lugar de falante de duas pernas. E você há de convir que conversar com uma pedra... me desculpe - conversar com uma rocha não é exatamente normal...
ROCHA - E por que não?! Os teus antepassados, há milhares de anos, faziam isso. Eu sorvi o sangue de sacrifícios tribais. Sobre mim riscaram signos e desenhos antes de balbuciarem as primeiras palavras; e bem aí onde agora estás, homens-macaco que há pouco ainda andavam com as mãos se sentaram para admirar o mar e imaginar o que havia além do vasto oceano. Eu fui altar, lousa e trono de sonhos! Eu fui cama de amantes e monotolito de deuses! Mas não mais. A tua raça distanciou-se na mesma medida em que convenceu a si própria de que eram os mestres da criação.
HOMEM - E não somos?
ROCHA - ...Depositaram na pólvora demasiada fé. Olha em volta, homem: tudo isso vai estar aqui bem depois de teus pares serem varridos do mapa da existência. Eu vi os primeiros peixes migrarem da água para terra, e vi dinossauros correndo pela areia. Eles se foram, os homens também irão. Eu não seria capaz de começar a explicar o quão fugaz é a existência de qualquer espécie que se mova. Estar de passagem é a essência de quem se move...
HOMEM - Você está discutindo semântica.
ROCHA - Não, não estou. Mas como já disse, reconheço minha incapacidade em discutir de forma válida e inteligível sobre mortalidade e expiração com um ser que conta sua vida em décadas. Leva, rogo-te, minha palavra como garantia: nós somos poeira cósmica. Nós somos um infinitesimal instante.
HOMEM - Nós? Pensei que você estivesse falando apenas das espécies que se movem.
ROCHA - Vocês são, sem dúvida, mais suscetíveis aos efeitos do tempo. Mas nada é eterno. Milhões de anos me ensinaram humildade. Talvez os homens de hoje em dia se julguem tão especiais porque ainda não tiveram tempo o suficiente sobre a terra para entender que estão traçando uma rota suicida.
HOMEM - ...Talvez estejamos mesmo. Guerras, desmatamento, poluição...
ROCHA - E quem falou em guerras, desmatamento e poluição? Por Gaia, vocês realmente acreditam que o planeta gira por obra, graça e intervenção do homo sapiens, não? O que eu estou dizendo é que de alguns séculos para cá a raça humana se alçou tanto para fora de si mesma que perdeu contato com o que tem mais precioso - o sopro de vida fundamental que lhes confere percepção, cognição e livre arbítrio. Cobriram o sexo por vergonha após comerem uma maçã, e desde então entraram em uma cadeia de auto-compensação que cada vez mais os afasta do que realmente são. Francamente, é patético.
HOMEM - E o que nós somos, realmente?
ROCHA - Livres. É o que deveriam ser, pelo menos. Esse era o plano.
(...)
ROCHA - Isso é que chamam de sorriso?
HOMEM - Como?! Oh, sim... isto é um sorriso. Para falar a verdade, nunca pensei que fosse tão simples.
ROCHA - O quê?
HOMEM - Sorrir. Você tem razão, afinal: nós nascemos para sermos livres. Isso deveria bastar.
(...)
HOMEM - Ei!
ROCHA - Sim?
HOMEM - ...Isso é um sorriso?
ROCHA - Não. É apenas um figmento da tua imaginação.

Nenhum comentário: