6.9.05

La Petit Mort

Abriu porta da varanda de forma lenta e deliberada. O vento lambeu seu rosto e braços, arrepiando pêlos e trazendo-lhe a lembrança dos passeios de bicicleta pelas ladeiras da infância. Não estava frio, apenas confortável. Ele sabia que tinha uma reunião importante pela manhã, mas entendeu que, se havia despertado com o uivo fraco mas insistente à janela, poderia muito bem aproveitar o céu de estrelas e lua nova. Coçou gentilmente a barba por fazer, a fricção aquecendo-lhe levemente as mãos, e foi até a geladeira sem acender as luzes no caminho. Apanhou uma garrafa de vinho tinto, buscou o romance que repousava na cabeceira da cama, e voltou ao amplo balcão externo, onde o vento que o acordara havia se transfomado em suave brisa. Acomodou-se em uma espreguiçadeira para ouvir a maresia e cheirar a chuva que já não caía, mas deixara uma fina camada de umidade sobre as plantas. Serviu-se uma taça, o gorgolejar do vinho ao deixar a garrafa saciando-lhe os ouvidos em uma madrugada atipicamente silenciosa, e perfeitamente sua. Abriu o livro. Estava mais ou menos no meio do segundo parágrafo quando uma pomba imaculadamente branca pousou no alambrado, e arrulhou um alô que só ele, entre todos os seres humanos, poderia entender. Como uma criança, devolveu o ruído. O bicho lhe sorriu e alçou vôo. Retornou ao livro, e nele permaneceu até pesarem os olhos. Estava recolhendo taça e garrafa, pronto para voltar para a cama, quando percebeu uma luz se acendendo no prédio em frente. Do outro lado da rua, uma mulher esguia, quase impossivelmente longilínea, chegava também à varanda. Usava uma camisola de seda preta que dispersava uma luminiscência tremulante ao sabor do vento - o mesmo vento que à primeira lufada delineou de forma gradual mas firme os jovens mamilos, em seios que ele não conseguiu decidir se eram pequenos ou fartos. A visão paralisou-o por alguns instantes pela pura beleza, e por não mais de um momento teve a ceteza de que, apesar da distância, os olhos dela - palidamente azuis em baixo contraste com a alva compleição da face - cruzaram com os seus. O encontro não foi instintivo, tampouco espiritual. Residiu no inefável, no indefinível. Sob o manto negro respingado de luz daquela noite sem lua, dançaram uma paradoxal sinfonia de nota única, eterna em sua brevidade. Ele apenas sorriu e voltou para o quarto. Ela abriu uma garrafa de vinho.

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