16.8.06

Mais um passo em direção à incerteza

Atenção. Sem ponto de exclamação, para não soar alarmista, mas sem reticências, para não parecer que temos todo o tempo do mundo para refletir sobre o sexo dos anjos - Atenção: seqüestraram um jornalista. Não foi no Oriente Médio, nem na Colômbia já-não-tão-cartelizada. Foi em São Paulo. Aqui no Brasil. A poucas ruas da redação da mais influente emissora de televisão do país. E olha que isso é dizer muito, porque brasileiros gostam muito de assistir televisão.
Não pediram resgate em cifras. Se aproveitaram dos números de audiência para exigir a exibição de um vídeo com pedidos absurdos de privilégios e regalias penais em nome dos mesmos facínoras que transformaram a própria São Paulo num inferno. Conversa vai, conversa vem, e entre o delírio eleitoral do ex-governador que não fala sobre segurança pública mas quer ser o presidente de amanhã; a tergiversação crônica do ministro que parece mais ocupado em desconversar sobre os escândalos do presidente de hoje; e um secretário estadual que parece entender a polícia como um canil de cães raivosos a serem atiçados contra bandidos em também elevado grau de sandice, a maior e mais influente emissora de TV do país virou refém. E isso é dizer muito, porque brasileiros gostam muito de assistir televisão.
Sem ter o que fazer, e exercendo legítima preocupação institucional com a preservação da vida de seu funcionário, a empresa levou ao ar o famigerado vídeo. Grande erro. O custo em vidas pode ser maior no futuro, se PCC, CV, TC, ADA e tantos outros grupos clandestinos resolverem adotar o expediente para angariar espaço editorial. E todos sabemos que por aqui não há CIA, FBI ou NSA que dê jeito. Só mesmo a PF, que - coitada! - tem só duas letras na sigla. E um monte de outras coisas para se preocupar que não administração penitenciária em nível estadual - A começar pela retidão de propósito e ação da própria PF.
Uma nota sobre administração penitenciária: construíram um mega-presídio no Paraná, em que o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD, mas um na sopa de letrinhas) é levado às últimas conseqüências. São mais de duzentas celas. Seria ótimo pouso para o Sr. Marcola. Mas só Beira-Mar está hospedado lá. É isso mesmo. o Beira-Mar. Muito inteligente, não? Enquanto isso, em São Paulo, criminosos recebem o sagrado indulto do Dia dos Pais. Que idílico...
De volta à vaca fria: milhares de analistas falaram, e a grande emissora garantiu voz ativa a quem corroborou a atitude de veicular o tal vídeo. Atenção: ficou cheirando a edição tendenciosa. Não é possível que a nossa Fantástica revista semanal de domingo não tenha encontrado um do contra sequer. Mas tudo bem. O que importa é que o rapaz foi libertado e passa bem. Então, tudo acabou como deveria.
...Só que não acabou.
Atenção, muita atenção: seqüestraram um jornalista. A bandidagem rompeu mais uma barreira. Olhos abertos: muitos repórteres acreditam na ilusão de um distanciamento sociológico da notícia, e poderiam até então pensar que estavam para sempre a salvo da violência que retratam cotidianamente. Ledo engano. Ser repórter no Brasil pode ser perigoso. Muito perigoso. E não há nada de acadêmico ou sociológico nisso. Já não é mais preciso subir o morro para correr o risco de morrer queimado (Salve, Tim! Rogai por nós!). Nestes dias tão estranhos, se o repórter não vai até o algoz, o algoz vem até o repórter.
Você por acaso se lembra do tempo em que se perguntava "Meu Deus, o que será que vai acontecer se eles resolverem sair das favelas e atacar no asfalto?" Faça um esforço, você vai se lembrar. Deve ter sido lá pela metade da década de 90... Pois está acontecendo. Seqüestraram um jornalista. As leis da guerra dizem que não se deve matar um mensageiro sob bandeira de trégua. Mas em tempos de caos urbano em tão óbvia ebulição, quem é o mensageiro? Qual é a mensagem? Existe trégua?
Atenção. Seqüestraram um jornalista. Negociar e ceder foi péssimo negócio. Se a moda pega, cada repórter vai virar um alvo em potencial, e nós não estamos falando de telefonemas anônimos sob ordens de um deputado que de fato não vai matar ninguém porque já está sob a vigilância dos flashes. Estamos falando de atores do silêncio e do breu social, que não têm nada a perder, e para os quais a vida - seja própria ou alheia - vale muito pouco diante do exercício de terror e afronta a uma máquina pública já enfraquecida por demais em todos os níveis para cuidar e proteger o cidadão comum. E o problema maior de tudo isso é que a história virou notícia de TV. O repórter, que poderia (deveria?) ser preservado, foi transformado na celebridade instantânea do fim de semana, a epítome maior de mais um passo que damos em direção à falência institucional do país. Os bandidos conseguiram tudo o que queriam. Viraram heróis classistas em uma operação meticulosamente bem executada. Com um detalhe: não precisaram de serviço de inteligência ou escutas telefônicas no plajamento - todo o circo foi armado com uma simples tocaia na padaria da esquina. Tudo transmitido via satélite, para milhões de espectadores no sofá da sala. Afinal, brasileiros gostam muito de assistir televisão.

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