28.8.07

O Ultimato Bourne (ou em defesa do cinema pipocão)

A experiência jornalística me ensinou a evitar generalizações, mas hoje vou me permitir uma bem ampla, para compensar todas as que evitei ao longo dos últimos anos: quem acha que cinema hollywoodiano é desprovido de sentido ou de mensagem é no mínimo ingênuo, e pode estar beirando a pseudo-intelectualidade. Cuidado! Não se alimente com jargões pedantes e esnobes, porque esse é um passo em direção à cegueira. Parto em defesa do pipocão porque estou cansado de ouvir que a única coisa que presta na indústria cinematográfica hoje em dia é o último-quase-documentário-de-um-diretor-iraniano-obtuso-e-hermético-que-ninguém-viu-porque-a-verba-de-distribuição-foi-consumida-na-coleta-de-cápsulas-deflagradas-utilizadas-no-figurino-que-por-sinal-veste-um-elenco-estelar-de-mendigos-descendentes-de-persas-de-pura-linhagem-nas-ruas-de-Teerã. Realmente, uma proposta original e ousada, a que só o crítico-intelectualóide-ranzinza-que-espera-comer-uma-caloura-de-cinema-ou-de-filosofia-ainda-nesta-década teve acesso.
Hollywood tem uma agenda, tem mensagens, e muitas delas vão além da óbvia propaganda nacionalista americana. Basta procurar para ver. Não foi à toa que quando o governo Bush começou a perder a mão na guerra contra o terrorismo e aprovou a quebra de sigilos telefônicos e outras medidas que feriram, na visão de alguns, a privacidade e a liberdade de cidadãos americanos em solo estadunidense, a indústria do cinema respondeu com filmes como A Vila, uma obra prima de Night Shyamalan sobre o controle através do medo, e tempos depois com Boa Noite, Boa Sorte - um convite à reflexão sobre o macartismo.
Não estou aqui para julgar o governo que paga meu salário, muito embora, se perguntarem, vou me dizer democrata, obrigado. Toda essa conversa sobre o valor de Hollywood vem para tão-somente tecer elogios a mais um blockbuster cheio de significado: não perca O Ultimato Bourne. Seria pecado mortal.
No que parece ser o último filme da série, vemos o agente secreto encarnado por Matt Damon (ótimo, como de costume) lutando para sobreviver em meio a uma grande queima de arquivo da CIA, durante a qual a moral passa para segundo plano quando operações não oficiais estão prestes a serem deslindadas e a agenda de auto-preservação de certos diretores da companhia atropela qualquer resquício de ética e bom senso. Desnecessário dizer, Bourne passa de gato a rato e novo a gato várias vezes até o fim do filme que eu não contar, explodindo coisas e provocando efeitos colaterais que deixariam James Bond ruborizado. Mas isso é apenas o óbvio.
Atenção na personagem Pamela Landy, mais uma vez interpretada por Joan Allen. Ela esconde uma pérola do roteiro. Uma mensagem curta, quase subliminar, que vai passar desapercebida se a sua boca estiver muito cheia de pipoca. A certa altura dos acontecimentos, em ainda mais uma discussão sobre se o melhor a fazer é mesmo eliminar Jason Bourne, ela toma partido a favor do assassino arrependido com uma frase tão curta quanto afiada e incisiva: "This isn't us." Em menos de um segundo perdido em mais de de duas horas de película, o resumo do descontentamento por uma situação que começou como não deveria e saiu completamente de controle. Aguce a visão: entre lutas bem coreogradas e explosões espetaculares - sem as quais, na minha opinião, é difícil fazer um bom filme para sábado à noite - está a metafórica crítica a uma administração que se isolou ao adotar medidas extremas por uma causa que, a princípio, quase todos defendiam; e acabou por se tornar algo perigosamente próximo daquilo que combatia, ao afetar a vida e arranhar o modelo de uma sociedade que prega a liberdade. Quando Joan Allen rouba a cena dizendo "Nós não somos isso", quase dá para arriscar em quem os roteiristas Tony Gilroy, Scott Burns e George Nolfi vão votar nas próximas eleições americanas...

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