11.9.04

Gestão pelo medo

Se você ainda não viu "A Vila", sugiro que não leia esse post. Sugiro também que você vá ao cinema.

O filme "A Vila" reforçou minha posição como fã de M. Night Shyamalan. O final, tão citado nos cartazes, nem me surpreendeu tanto. Supreendeu-me sim a séria reflexão proposta sobre um tema que está muito presente em nossas vidas. Ao que muitos, depois de lerem as críticas e assistirem ao filme dirão: o medo. A que eu respondo: também. Porém mais do que simplesmente o medo, o filme me levou a pensar sobre o medo como ferramenta de controle político. Penso que existem várias maneiras de exercer liderança. O exemplo é a mais legítima e virtuosa de todas, mas anda em falta. Infelizmente, dinheiro, teocracia e medo são, acredito, as mais presentes em nossos dias. Sobre o poder financeiro não preciso falar muito. Alguns vão chamar-me de teórico da conspiração, mas quero crer que ninguém é ingênuo a ponto de duvidar da força da grana que ergue e destrói coisas belas - já dizia Caetano. Vivemos o capitalismo, não há muito como fugir disso em uma escala global. Eu ao menos não vislumbro alternativas práticas de sistema. O dinheiro faz prefeitos, governadores e presidentes. O dinheiro lidera. Ponto. A teocracia é outro mal do nosso mundo. Parece confortável afirmar que escapamos da Idade das Trevas, mas é preciso abrir os olhos. Pessoas estão matando e morrendo em Guerras Santas - a terminologia bélica sequer foi alterada daqueles tempos para cá - e bem aqui pertinho, no Brasil, a Igreja Universal e outros grupos evangélicos estão ocupando espaço político cada vez maior. Nada contra a Igreja Universal se você realmente acredita. Todo homem, dizem, precisa de uma crença. Mas misturar fé e política raramente traz resultados positivos. E isso vale para todos os lados. Respeito João Paulo II como grande estadista, mas acho que ele deveria ter ficado mais tempo no Vaticano ao longo de seu pontificado. Respeito Ariel Sharon e Yasser Arafat, mas vejam só aquela bagunça... Isso, entretanto, é outra discussão. O que realmente quero dizer aqui é: talvez a liderança pelo medo seja a mais danosa de todas. Ela é cega, não permite discussões, e quase sempre sobrevive a base de mentiras e simulacros. É a mais opressora forma de exercer poder, porque trata de dobrar o espírito dos que se sujeitam a ela, erradicando qualquer forma de discussão que pudesse mesmo levar a uma progressão do regime para melhor. A política do medo é uma que não evolui. É estagnada por si e pela sua forma prática, mas ainda assim tende a perpetuar-se: pelo pavor que imobiliza quem está por baixo, pelo conformismo e/ou sectarismo que infecta quem está por cima. "A Vila" trata de um sistema de governo pelo medo. As relações são deterioradas porque há segredos demais, e a revelação desses segredos acaba inevitavelmente por levar ao sofrimento - do corpo, da mente e do espírito. Nada tira da minha cabeça que o personagem Noah (brilhantemente interpretado por Adrien Brody) foi à demência por descobrir a farsa dos anciãos. Por isso ele se diverte tanto com a noção de que aqueles-de-quem-não-falamos estão vindo. Noah personifica a dor da mente. E que um personagem com o nome de Noé mate e esfole animais é uma crueldade deliciosa do roteirista, falando sobre a inversão de valores gerada pela gestão do horror. Lucius é o sofrimento do corpo. A vítima direta e óbvia. Quando o poder é exercido pelo medo, a violência física torna-se inevitável em algum ponto. É porque Lucius não tem medo que a jovem Ivy se apaixona por ele. É porque Lucius não tem medo que ele desperta a inveja de Noah. Por ter coragem, Lucius sofre. Assim funciona esse tipo de governo - seja no cinema, seja nos porões da tortura para onde é levado quem se levanta contra a ordem estabelecida na vida real. O medo da dor é primordial ao ser humano, e a violência germina - também - a partir disso. Walker é o sofrimento de espírito. O líder que percebe o quão distorcido se revelou seu sonho, e em desespero arrisca o que mais ama - a filha e o próprio sistema - na esperança de salvar alguém que, ele acredita, possa dar continuidade ao modo de vida da Vila. Para governar é preciso não ter medo. E Lucius, vejam que curioso, é a única figura masculina da história que se enquadra nesse perfil. Nenhum esforço é poupado para salvá-lo porque a política do horror precisa da inocência, da esperança e da coragem em doses controladas para sobreviver. Triste, mas real. Em suma: o medo é péssima forma de liderar. E "A Vila" é uma crítica muito mais ácida a George W. Bush do que qualquer esforço panfletário de Michael Moore, com quem ando meio decepcionado nos últimos tempos. O medo gera distorções nocivas de cognição da realidade, e cedo ou tarde foge ao controle de quem julga estar manipulando as cordas, escalando a regimes de terror. Marquem a data: sábado, onze de setembro. No mundo de hoje... de que lado está o terror?

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