5.8.04

O Hino Nacional e a mãe de uma amiga

Dia desses fui escalado para a cobertura jornalística de uma dessas cerimômias pretensamente importantes, em que tocam o Hino Nacional nem tanto por amor à pátria, e sim na tentativa de dar mais pompa à circunstância. Aconteceu de as fontes importantes falarem antes do início oficial do evento, e eu, repórter de rádio, resolvi ficar fora do salão principal - num espaço em que um coquetel ainda era servido - preparando um texto para entrar no ar enquanto, lá dentro, as margens plácidas do Ipiranga começavam a ouvir o brado retumbante de um povo heróico. Eis que, ao me ver sentado, bloco e caneta na mão, uma senhorinha começa a gesticular em desaprovação, indicando que eu deveria, por dever cívico, parar tudo o que estava fazendo e erguer-me em respeito à execução do Hino, que transcorria lá dentro. Odeio essas pessoas que falam através de pequenos gestos agitados. Aliás, odeio pequenos gestos. Até entendi a mensagem, mas pensei: "ora, não estou no salão do evento. Aqui fora, ainda tem gente comendo e bebendo, e essa mulher vai implicar comigo, que estou trabalhando?" - Ignorei a ilustríssima desconhecida. Não se dando por vencida, entretanto, identificou-me como repórter pelo adesivo no gravador, e interpelou-me:
- CBN, eu sei que você está trabalhando...
Odeio que se dirijam a mim dessa forma. Quando estou na rua a trabalho, uso crachá por uma questão de praticidade funcional, e o crachá tem meu nome. E meu nome não é "CBN". Interrompi-a de pronto, dizendo que estava de fato trabalhando, e retornei às anotações. Foi o que de mais educado me ocorreu fazer, sabendo que eu estava para passar do horário numa sexta à noite, e considerando que ela não estava exatamente pressionando os botões certos para me fazer sorrir. Diante da minha contida porém visível irritação, a senhora suspirou, soltou um "puxa vida" como quem se resigna em pseudo-conformismo ante a truculência alheia, e disse-me que era mãe de (...) "que trabalhou na CBN trezentos anos", imagino que comparando minha falta de cortesia à fina educação de sua cria. A filha da implicante é uma colega querida, por quem tenho muito carinho. A menção de seu nome acalmou-me o ânimo, levou-me a contar até dez, e evitou grosseria maior. Ocupei-me apenas em finalizar meu texto, enquanto o baluarte da cidadania em forma de mulher ia-se embora, em meneios negativos de cabeça. Pergunto aos leitores que me acompanharam até aqui: deveria eu ter derramado sobre a patriota palavras que refletissem a minha profunda paz interior naquele momento? Ou será que, estabelecida sua identidade como "mãe de amiga", agi corretamente em deixá-la escapar com os ouvidos impunes? Em circunstâncias como essa, Mãe de Amiga tem salvo-conduto?

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