29.10.04

Personagem Clarice e o homem nu

Há tempos Letras Mortas não faz reflexões políticas pretensamente sérias. Vamos então a uma looonga série de considerações...
O secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, anunciou nesta quinta-feira que a viúva de Vladimir Herzog, Clarice, reviu as fotos que seriam do jornalista morto (1975) em cativeiro militar e não mais identificou o marido. Há coisa de duas semanas, o Correio Braziliense publicou fotografias de uma tal série guardada em um arquivo "secreto" do governo, trazendo depoimento de Clarice em que ela reconhecia o parceiro em uma das chapas. A declaração me chamou atenção, porque ela dizia não estar muito certa com relação a duas das fotos, mas atestava - então - ser Vladimir um prisioneiro que aparcia nu em uma das imagens. Que agora venha afirmar que a mesma foto não retrata Herzog me deixou assaz intrigado. Aparte de qualquer tentativa de sátira pornográfica com tão sério assunto, uma viúva que diz reconhecer seu homem em nu frontal merece crédito. Como pode ela, uma semana depois, mudar de idéia? As teorias de conspiração começam a espocar em minha mente doentia.
O jornalista e cientista político Maurício Santoro publica texto em Os Conspiradores (25/10) no qual aventa a hipótese de a Agência Brasileira de Inteligência ter dado início a uma campanha de desinformação sobre o assunto. Um braço do governo tentando frear toda a discussão sobre o processo de abertura de arquivos que Deus sabe o que escondem... Mais sobre isso adiante. A primeira pergunta que faço é: de onde saíram as fotos? A indagação me parece pertinente porque o real jornalismo investigativo anda em baixa no Brasil. As fitas do escândalo Waldomiro Diniz, por exemplo: saíram das mãos de um senador da oposição para a redação da revista Época. Todo mundo no meio profissional sabe disso. Manobra política contra Dirceu. É claro, com acesso ao material, e a devida apuração do caso, é dever da imprensa informar. Isso não se discute. Mas é preciso considerar que, desde a morte de Tim Lopes, o jornalismo brasileiro ficou carente de reportagens realmente originais e investigativas lato senso. A pulga atrás da minha orelha, sobre a qual não tenho nenhuma evidência, se não conjecturas circunstanciais: o presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, João Luiz Duboc Pinaud, vem há tempos imemoriais defendendo a abertura dos tais arquivos, mas o assunto estava meio... morto, na falta de palavra melhor. Fato: os documentos fotográficos já tinham vazado em 1997; não eram assim tão secretos. Quando aconteceu, ninguém percebeu a semalhança entre Vladimir Herzog e o homem nu.... Mas se podemos pensar que a ABIN abriu ações para abafar o caso, poderemos pensar também que - ao início de todo o processo - Pinaud, ou outra fonte interessada no acesso público aos arquivos secretos da ditadura, procurou o Correio para soprar uma dica e reapresentar o material? E se este for o caso: que preço se paga pela memória de um país? Os tão falados direitos humanos justificam estratégias maquiavélicas? O bem como fim releva o mal como meio? Digo mal porque se toda essa história não passou de um balão de ensaio - com intervenções contrárias de pontos distintos do mesmo governo - então estamos mesmo perdidos, porque o jogo de bastidores vai novamente postergar toda e qualquer iniciativa concreta sobre a abertura, podem apostar. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos é órgão da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. E a Agência Brasileira de Inteligência... bem, essa ninguém sabe muito bem o que é, mas se ela tem partido nesse imbróglio, parece então uma semente tortamente germinada da bagunça que foi o SNI. Acho que nem Golbery ficaria orgulhoso. Mas vejam: seja como for, é governo batendo cabeça com governo. Pior que filme dos Trapalhões.

Dito tudo isso, ainda quero saber o seguinte: a essa altura dos acontecimentos, se não é mesmo o Herzog, então quem é o sujeito nas fotos? Ele certamente tem - ou teve - família, e sua memória tem o mesmo valor que a do jornalista.
Deixando de lado as teorias de conspiração, tenho a dizer que o Correio Brasiliense, a meu ver, fez um jornalismo correto. Ouviu a viúva, e publicou o depoimento - na minha análise, contundente. Como pode a mesma viúva, uma semana depois, dizer "Eu fiquei aliviada. Aliviada por saber que então ele não passou por aquilo. Mas o Vlado teve mais essa função política, tão importante. Os arquivos secretos precisam ser abertos sim, são mais de 100 famílias que esperam esclarecimentos e toda uma sociedade. O caso teve essa importância, de cobrar essa dívida do Estado". Ora, por favor, mais chocante do que a foto de um homem nu é a imagem de um homem enforcado na cela, exibindo marcas de tortura, associada à versão de que ele teria "cometido suicídio". E foi isso que os militares venderam quando Vladimir morreu. Já isso lhe garantia importância simbólica na discussão política sobre anistia e abertura. O pênis - dele ou alheio - não precisava vir a público para (re)suscitar essa mesma e inegável importância.
Uma cobrança por demais agressiva a Clarice? Talvez. Mas ela precisa se decidir. Toda a prosódia da publicação dessas fotos está muitíssimo mal contada. E não é com histórias mal contadas que vamos levar à frente a busca de verdades sobre tão obscuro período da memória nacional. O que para muitos é jogo político, para outros é dor de família. Eu não tive parentes mortos ou exilados pela ditadura. Não tenho Vlado como ícone profissional ou escrevi esse texto como ode à sua memória. Aliás, conheço de Vladimir Herzog o que Elio Gaspari me contou em "Ilusões Armadas", e pouco mais. Mas sei que ele é um símbolo. E símbolos não devem ser tão levianamente evocados, sob risco de perderem a força. E a causa da qual Vladimir é símbolo merece não apenas atenção mas... carinho. Finalmente, o sobrenome de Clarice é Herzog, não Sterling. Ela não é agente federal, e não pode, mesmo que inadvertidamente, deixar-se envolver em tramas de Silêncio dos Inocentes.

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